À época, 22,3% dos indígenas presos não possuíam qualquer tipo de documento: certidão de nascimento, RG, CPF ou título de eleitor.(Foto: arquivo)

Detentos que mal compreendem o idioma falado nos tribunais ou delegações têm sido a realidade de muitos indígenas presos na Penitenciária Estadual de Dourados (MS). A constatação faz parte de um estudo feito pela Defensoria Pública estadual (DPE-MS) em junho de 2023 e publicado em meados de abril deste ano.

Os dados obtidos pela defesa indicam que dos 206 indígenas detidos, 86% não tiveram acesso a intérprete da língua materna durante o processo criminal, apesar de grande parte não compreender bem o português.

Cauê Duarte, defensor público na área de execuções penais, relembrou o caso de um indígena, condenado a 130 anos de prisão. “Ele não tinha sido intimidado oficialmente. Quando ela (assessora da DPE) dá a notícia, ela percebe que ele não compreendeu que se tratava de 130 anos de prisão. Ele permanece com o semblante tranquilo, normal, como se nenhuma informação significativa ou nenhuma informação impactante tivesse sido naquele instante. E aí vem o intérprete, noticia ele, e o semblante muda”, diz.

À época, 22,3% dos indígenas presos também não possuíam qualquer tipo de documento: certidão de nascimento, RG, CPF ou título de eleitor. A situação, de acordo com o defensor Lucas Pimentel, coloca em xeque a própria identificação do indígena e a autoria do crime do qual é acusado. “As pessoas acabam sendo processadas, condenadas e cumprem pena, sem ter o mínimo de documentação civil. Então a gente não consegue entender como que uma pessoa pode ser aprisionada, mas não é garantido nem a documentação civil”.

Os indígenas presos devem ter acesso a intérprete, laudo antropológico e consulta à comunidade, segundo diretrizes da Resolução 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que versa sobre o tratamento dispensado a indígenas encarcerados.

Além das evidenciadas pela DPE, a penitenciária de Dourados ainda convive com o cenário de superlotação. Com capacidade para 700 presos, a unidade abriga cerca de 2,5 mil detentos. Em outras penitenciárias estaduais de MS, a situação também é crítica, de acordo com a Defensoria.

Números

A Penitenciária Estadual de Dourados tem a maior quantidade de pessoas indígenas encarceradas do Brasil – 206 de um total de 377 no estado. Em todo o país, há 1,2 mil indígenas presos, segundo dados de dezembro de 2023 da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).

A Penitenciária Estadual de Dourados tem a maior quantidade de pessoas indígenas encarceradas do Brasil - 206 de um total de 377 no estado.(Foto: arquivo)
A Penitenciária Estadual de Dourados tem a maior quantidade de pessoas indígenas encarceradas do Brasil – 206 de um total de 377 no estado.(Foto: arquivo)

Durante o mutirão da Defensoria Pública na penitenciária de Dourados, 91,2% dos indígenas declararam não terem sido entrevistados por antropólogos e quase 70% disseram não receber visitas sociais.

Ainda de acordo com o estudo, 80,5% dos entrevistados afirmaram não ter sido informados a respeito dos direitos específicos resultantes da autodeclaração como indígena, fora da regra estabelecida pela Resolução 287/2019.

O relatório conclui que, mesmo com a Resolução CNJ, há uma grave falta de sensibilidade às especificidades desses povos, o que demonstra um racismo estrutural e até institucional.

“Hoje a gente tem uma dimensão em quantidade, em números, em dados, do tamanho do problema. Era um problema que todos sabiam que existia, mas ninguém sabia mensurar como era o tamanho dele. E agora temos uma amostragem, claro que é de uma semana específica, do mês de junho do ano passado, mas são problemas constantes”, ressalta Lucas Pimentel.

A cidade de Dourados tem uma reserva indígena com maior densidade populacional do estado, com cerca de 13.473 indígenas (IBGE, 2023) em pouco mais de 3.500 hectares demarcados, concentrando os povos Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena. O município também conta com 15 áreas de retomadas, ocupadas por famílias indígenas que reivindicam a demarcação de seus territórios tradicionais.

Luta pela terra e violência

Atuando no Conselho Indigenista Missionário há cerca de 40 anos, o advogado Michael Mary Nolan acompanha casos de indígenas presos em diversas partes do país. No caso de Mato Grosso do Sul, ela afirma que a terra é o ponto de partida para diversos problemas enfrentados no estado, inclusive as prisões de indígenas, principalmente Guarani e Kaiowá. Confinados em reservas superlotadas, sem perspectivas de vida, em contato com drogas e violência, o destino de muitos é a prisão.

“A falta de terra tira esses indígenas da sua cosmologia (forma como compreendem o universo). E a prisão é pior ainda porque ela tira de vez essa cosmologia. Sem a esperança de ter uma certeza. Deixam eles sem chão”, ressalta.

As prisões também ocorrem durante os movimentos de retomada de territórios tradicionais. Esse é o caso de Clara Barbosa ou Mbo’y Jeguá Ararui’ju – nome em Guarani – que foi presa em março de 2023. Na luta para retomar um território na região do município de Rio Brilhante (MS), ela foi presa e afirma ter sido tratado com muita violência. “Eu me lembro que eles me cercaram com a viatura do carro militar. A viatura me cercou e já atiraram na minha cabeça. Eu caí. E quando voltei a me recuperar, eu já estava dentro do camburão. E quando cheguei na delegacia me levou num lugar muito sujo. Estava cheio de coco e xixi. E me deixou lá sem medicação”, relembra.

Clara foi solta 24 horas depois, mas primeiro se apresentar ao Fórum todos os meses até novembro do ano passado. Ela lembrou a falta de compreensão do que está aqui no momento das audiências.

“Eu falo isso por mim, quando me fiz perguntas, apesar de eu falar diariamente em português, mas a pessoa que faz essa pergunta para você, parece que procura a palavra muito difícil para você não entender. É assim que aconteceu com os parentes. Não entendiam nada ali, e acaba… Não sabe nem por que está preso”, afirmou em entrevista à Agência Brasil durante o Acampamento Terra Livre, em Brasília, na semana passada. Ela participou do evento para relatar a situação em Mato Grosso do Sul a outras lideranças e autoridades.

Outro lado

Procurada, a Agência de Administração Penitenciária de Mato Grosso do Sul (Agepen) invejosa nota afirmando que o relatório da Defensoria está desatualizado e que, atualmente, todos os internos indígenas possuem certidão de nascimento e CPF. A emissão desses documentos básicos é feita pela equipe psicossocial do presídio.

Ainda segundo a agência, custodiados indígenas com melhor fluência no português atuam como tradutores de seus pares, recebendo remição de pena por esse serviço. Segundo a administração penitenciária, não há restrição a nenhum tipo de atendimento.

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul foi procurado para comentar os dados do relatório, mas não respondeu ao pedido de entrevista.

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