A negativa ocorre mesmo quando o paciente declarou em vida o desejo de ser um doador

Equipe da Santa Casa de Campo Grande durante cirurgia de transplante em 2020. (Foto: Assessoria)

Em 2024, 559 pessoas aguardavam na fila por um transplante em Mato Grosso do Sul, uma espera que gera ainda mais ansiedade quando o paciente se depara com uma estatística difícil de combater. Em Mato Grosso do Sul, no ano passado, de 106 potenciais doadores, em 59 casos as famílias não autorizam a retirada dos órgãos. Isso significa que a cada 2 doações, pelo menos 1 não é efetivada pela coleta dos parentes que se recusaram a enviar a documentação.

Em cada vida perdida, há vários órgãos que podem ser retirados para salvar outras, mas essa ideia não convence todo o mundo. A negativa também ocorre mesmo a pessoa tendo declarado na vida o desejo de ser um doador. Hoje, existe a possibilidade de registrar de graça esse desejo em cartório, mas sem poder legal e, no fim das contas, quem decide é uma família.

A CET/MS (Central Estadual de Transplantes de Mato Grosso do Sul) é responsável por coordenar o processo de notificação, coleta e distribuição de órgãos. Para conseguir salvar a vida de alguém, o trabalho também envolve conscientização, buscas diárias de possíveis doadores no Imol (Instituto de Medicina e Odontologia Legal), no SVO (Serviço de Verificação de Óbito), UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e CRSs ( Centros Regionais de Saúde).

À frente da CET/MS, Claire Carmem Miozzo fala que a recusa dos familiares é algo que ocorre em todos os estados, mas no caso do Mato Grosso do Sul, o cenário é pior que na média nacional de 42% de recusas, por diferentes porquês.

“São vários motivos que as famílias alegam: desconhecem a vontade do doador, nunca demoram na entrega do corpo, querem o corpo íntegro, familiares não foram atendidos especificamente no hospital, familiares não aceitam a morte encefálica ou ouviram falar em doação de órgãos. Enfim são muitos motivos, mas o principal é que desconhecem a vontade de ser doador de órgãos da pessoa que morreu”, esclarece.

Coordenadora do CET/MS, Claire Carmem Miozzo fala sobre doação de órgão em MS.  (Foto: Divulgação)
Coordenadora do CET/MS, Claire Carmem Miozzo fala sobre doação de órgão em MS. (Foto: Divulgação)

Apesar do número alto de negativas, a coordenadora explica que há formas de transformar o não em um ‘sim’. “Quando as famílias são bem acolhidas e entrevistadas especificamente, a probabilidade de dizer ‘sim’ a doação de órgãos é maior”, declara.

Como o processo de doação de órgãos é feito em hospitais, equipes são treinadas para fazer o acolhimento e entrevistar familiares. Claire Carmem enfatiza que no final, a palavra do parente é a última que vale. “Se a família não autorizar a doação, agradecemos e explicamos quais os próximos passos para a entrega do corpo do ente querido”, diz.

Além do papel da CET/MS para conseguir reverter a negativa, Claire destacou a importância de as pessoas falarem abertamente com a família sobre a vontade de ser um doador de órgãos. “É preciso que as pessoas conversem com seus familiares e deixem claro, na vida, o desejo de ser um doador de órgãos e tecidos. Quando uma família sabe a verdade da pessoa, a chance de dizer sim a doação é maior”, afirma.

No Brasil, a doação de órgãos é feita por dois tipos de doadores: o vivo e o falecido. O primeiro contemple aqueles que têm o desejo de fazer e podem o procedimento, desde que o mesmo realizar não prejudique a própria saúde. O segundo é o doador falecido que, mesmo tendo autorização em vida, só terá os órgãos doados diante da autorização familiar. A liberação pode ser concedida por uma participação, pai, mãe, irmão ou avós.

Tabela mostra o número de cirurgias realizadas no Estado deste ano.  (Arte: Bárbara Campiteli)
Tabela mostra o número de cirurgias realizadas no Estado deste ano. (Arte: Bárbara Campiteli)

Fila do transplante em MS – Conforme os dados da SES (Secretaria Estadual de Saúde), dos 559 que estão na fila, 376 precisam do transplante de córneas e 183 do transplante de aro. Apesar de expressivo, o número não mostra na totalidade quantos resultados sul-mato-grossenses de um ou mais órgãos para continuar vivendo. Isso porque, além dos citados acima, no Mato Grosso do Sul são realizados apenas o transplante de medula óssea e tecido muscular esquelético (ossos).

Neste ano, o Estado já realizou 112 transplantes, sendo o de médula o que liderou a lista com 92 procedimentos procedimentos. Em seguida vem rim (13), tecido muscular esquelético (4) e médula (3).

Em breve, o Estado poderá realizar transplante de fígado. Ó Ministério da Saúde e o Sistema Nacional de Transplante autorizaram o Hospital do Penfigo unidade matriz a realizar o procedimento. Mesmo com autorização, um coordenadora da CET/MS explica que falta a Secretaria Municipal de Saúde contratualizar o serviço junto ao hospital para que esse tipo de transplante seja feito.

Dos 112 transplantes realizados em 2024, córnea liderou o ranking com 92. (Arte: Bárbara Campiteli)
Dos 112 transplantes realizados em 2024, córnea liderou o ranking com 92. (Arte: Bárbara Campiteli)

Assim que a medida de tomada, a CET/MS fará o encaminhamento dos pacientes que precisam da doação. “A equipe vai avaliar o paciente, solicitar exames e se realmente tiver indicação para transplante de fígado, ele será inserido no arquivo e aguardará até que seja consultado um órgão compatível. Quando tivermos uma doação, vamos oferecer para uma equipe transplantadora que avaliará o órgão e a situação do receptor para que as pessoas possam realizar o transplante com segurança”, esclarece.

‘Doação é amor’ – A lista para transplantes é única sem dar privilégios a pacientes da rede privada ou do SUS (Sistema Único de Saúde). Uma vez que o paciente entre, só resta aguardar e essa espera pode durar mais tempo faça que uma pessoa doente tenha para doar. Em Campo Grande, três homens sabem por experiência própria que a decisão de ser um doador salva vidas.

Carlos Henrique é um dos campo-grandenses que defende a doação de órgãos.  (Foto: Arquivo pessoal)
Carlos Henrique é um dos campo-grandenses que defende a doação de órgãos. (Foto: Arquivo pessoal)

Carlos Henrique Brittes Taveira, de 57 anos, encontrou no próprio âmbito familiar um doador. A irmã foi quem o salvou em 2015 quando precisava de um rim. Há nove anos, Carlos viu tudo acontecer rapidamente, desde o diagnóstico até a cirurgia que passou alguns meses.

Em março daquele ano, ele sentiu dores musculares após uma partida de futebol e não demorei para discutir o motivo. “Fui ao médico e foi constatado que estava com insuficiência renal. O médico falou que iria me preparar para uma hemodiálise e eu entrei numa dieta zero sal, proteína, potássio”, diz.

Passado um mês, a hemodiálise foi suspensa e até junho Carlos focou numa alimentação saudável. Com as taxas reduzidas, como a de hemácia, ele foi encaminhado para a fila do transplante. Nessa época, a irmã passou por uma série de exames para testar a compatibilidade, que atestou 100%. Com o ‘sinal verde’, ela precisou perder nove quilos para a cirurgia, que foi realizada em dezembro do mesmo ano.

O transplante foi um sucesso e, segundo Carlos, isso fez toda a diferença. “Ela salvou minha vida, porque se ela não tivesse feito isso automaticamente eu ia para uma hemodiálise. Eu estava segurando a dieta, achei que iria voltar o aro, mas não. Eu fui abençoado”, destaca.

Geison Rezende Salgado, de 58 anos, tem uma história à parte como receptor. O empresário recebeu, em anos diferentes, a doação de córneas e aro. A primeira experiência foi em 1986, quando recebeu o transplante de córnea do lado direito devido ao diagnóstico de ceratocone.

A doença que é considerada rara fez com que Geison perdesse 60% da visão. Aos 20 anos, ele conta que entrou na sala de cirurgia sem saber se o procedimento daria certo, pois o transplante ainda era novidade na Capital.

“Uma grande preocupação era sobre o resultado do transplante, pois existe o risco de perder a visão por inflamação. Se não me engano, o meu foi o segundo transplante de córnea na cidade”, recorda.

O transplante foi um sucesso, mas em 2021 o empresário voltou a enfrentar a fila. Dessa vez, ele precisa do mesmo órgão, mas para o lado esquerdo. Assim como na primeira vez, tudo ocorreu bem e até hoje Geison segue sendo acompanhado pelo mesmo médico responsável por ambas as cirurgias.

A história poderia terminar assim, porém em 2014 Geison recebeu duas alternativas: diálise ou transplante de rim. Naquele ano, o campo-grandense foi a São Paulo, para o Hospital das Clínicas, fazer o tratamento. A irmã foi quem doou o aro, que acabou sendo recusada pelo organismo do empresário.

“Deu tudo errado, tive hemorragia, deu trombose. Eu não morri por Deus. Depois, fiz dois anos de diálise e em 2016 me chamaram no Hospital do Rim em São Paulo”, comenta.

Dessa vez, Carlos recebeu a borda de um doador falecido. “O transplante foi perfeito, está indo para oito anos e faço acompanhamento aqui em Campo Grande em São Paulo”, diz. Salvo mais de uma vez com a doação de órgãos, o empresário espera um dia fazer o mesmo por outra pessoa. “Eu sou um doador. Eu costumo falar que deve ter alguma coisa que vai servir pra alguém. Eu espero que sirva e acho que isso (doação) é muito importante”, afirma.

Carlão, em palestras sobre a importância da doação da medula óssea.
Carlão, em palestras sobre a importância da doação da medula óssea.

Em Campo Grande, Carlos Alberto Rezende, o ‘Professor Carlão’, é figura conhecida em relação à conscientização da doação de sangue e órgãos. Em 2015, ele foi diagnosticado com aplasia medular grave e no ano seguinte recebeu o transplante de medula óssea. Desde então, o professor de Biologia e Química chama atenção para essa causa em Mato Grosso do Sul.

Idealizador do Instituto Sangue Bom, ele e outros voluntários atuam na área de saúde, educação, esporte e cultura tendo como base a importância de ser um doador de órgãos, sangue e medula óssea. O professor enfatiza que é essencial que aqueles que sintam vontade de fazer órgãos conversem com os familiares sobre o tema, pois independente desse desejo é o responsável que irá autorizar ou não o procedimento.

“É muito importante que essa conscientização chegue às famílias. O Instituto Sangue Bom, com a minha palestra, ‘Histórias de um Transplantado’, leva incansavelmente essa informação. Dessa forma não apenas conscientizando, mas também sensibilizando as pessoas da importância que esse pequeno gesto de amor tem na vida do próximo”, explica.

Apesar da dor da perda de alguém querido, o professor fala que a decisão não deixa de ser um gesto de amor com o próximo. “O mais importante da adoção é que a gente faça o bem sem ver a quem e sem esperar resposta, pois viver é um gesto de amor. Portanto, é muito importante a conscientização”, conclui.

Profissionais no transporte em 2023 de órgãos de garotinha de 3 anos, que morreu afogado em Dourados.
Profissionais no transporte em 2023 de órgãos de garotinha de 3 anos, que morreu afogado em Dourados.

Em Mato Grosso do Sul, os transplantes de órgão são realizados nas seguintes instituições:

  • Transplante de aro: Santa Casa (SUS) e Hospital da Unimed (particular e conveniente);

  • Transplante de medula óssea autólogo: Hospital Cassems (particular e convênio);

  • Transplante de tecido muscular esquelético (ossos): Hospital da Unimed (convênio e particular);

  • Transplante de córnea: Santa Casa (SUS), São Julião (SUS) e diversas clínicas particulares que realizam o transplante de córnea.

Critérios – A lista de espera por um funcionamento baseado em critérios técnicos, em que tipagem sanguínea, compatibilidade de peso e altura, compatibilidade genética e critérios de gravidade diferentes para cada órgão determinam a ordem dos pacientes a serem transplantados.

Quando os critérios técnicos são semelhantes, a ordem cronológica de cadastro, ou seja, a ordem de chegada, funciona como classificação de desempate. Pacientes em estado crítico são atendidos com prioridade, em razão de sua condição clínica. Quando um paciente precisa de transplante que não é realizado em Mato Grosso do Sul, o mesmo será encaminhado para outro estado com equipe e estabelecimento autorizado para a realização do transplante.

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